segunda-feira, 27 de junho de 2011

A Rosa Antieuclidiana

Escrevi esse textinho para o jornal do grupo que faço parte na PUC/SP, a Construção Coletiva. Resolvi compartilhá-lo aqui, pois acho que esses parágrafos são uma boa apresentação do grupo para quem não conhece. Também pensei que colocar esse texto aqui é uma forma de preservá-lo, para que eu mesmo não termine perdendo-o. Em alguns momentos pode parecer um pouco piegas, mas acredito que essa apresentação é uma boa síntese das concepções políticas que defendo para a organização do movimento estudantil de forma geral. Segue o texto.      

A Rosa Antieuclidiana
                                                                                          
 “Os tiranos quanto mais pilham mais exigem, quanto mais arruínam e destroem, mais se lhes dá, quanto mais são servidos, mais se fortalecem, e se tornam cada vez mais fortes e dispostos a tudo aniquilar e destruir; e se nada lhes dá, se não se lhes obedece, sem lutar, sem golpear, ficam nus e desfeitos, e não são mais nada, como o galho se torna seco e morto quando a raiz não tem mais humor ou alimento”
(La Boétie)  

“Posso não mudar sua opinião, mas espero ao menos causar inquietação” (Dostoievski) 

            Nessa primeira edição de nosso jornal – esperamos que primeira de muitas – começamos, educadamente pela nossa apresentação aos que ainda não nos conhecem. Prazer, somos o Grupo Construção Coletiva. Ao invés de fazer uma apresentação formal (e chata) do nosso coletivo vamos inverter um pouco a ordem das coisas e falar primeiro, em poucas palavras, sobre a PUC/SP e sobre o que entendemos por universidade.
            A nossa PUC tem uma curiosa fama de universidade democrática. Apresar dessa fama é com grande pesar que constatamos hoje que a democracia na PUC já não passa de uma página virada no livro de sua história. Desde a intervenção promovida pela Igreja Católica no ano de 2006, a criatividade puquiana tem sido substituídas pelo obscurantismo e mediocridade. No corrente ano de 2011 parece que chegamos próximos da completude desse projeto, a “ditadura da igreja”, que até então se mostrava de forma envergonhada, perdeu o pudor e agora exibe a que veio da forma mais escancarada possível.
            Diante das últimas ações do CONSAD (Conselho administrativo composto pelo Reitor e dois Padres da Fundação São Paulo) parece ter ficado claro que todos os demais conselhos da universidade e das faculdades nunca passaram de mera encenação de uma democracia já assassinada. O mais frustrante de tudo isso é que esses senhores do clero nem mesmo possuem qualquer poder de Direito; suas últimas “ordens” são eficazes puramente por que geram obediência da acuada comunidade puquiana, mas não encontram qualquer amparo no corpo normativo interno da universidade ou no ordenamento jurídico pátrio
            É impossível dissociar tanto o formato quanto a qualidade do nosso curso de Direito dessa estrutura autoritária imposta à PUC. Diante então da naturalização desse “estado de exceção” nas instituições outrora democráticas da PUC, não é de se estranhar que, no âmbito acadêmico, a inovação ceda lugar a repetição, que a crítica seja substituída pela pura doutrina dogmática, que o saber seja esmagado pela técnica e que a liberdade de pensar, de produzir conhecimento seja tolhida pela disciplina que impõe o pensamento único.
            Além disso, esse processo pelo qual passa a PUC, implica em uma ferrenha desvalorização de todos os espaços fora da sala de aula. Temos que lembrar que no espaço além das aulas não existem apenas rampas e lanchonetes. São nos momentos extra-aula que se entra em contato com a diversidade do mundo universitário, é onde os sujeitos se identificam e se expressam em suas liberdades, é onde se produz a pesquisa, é onde se cria a extensão para levar a universidade para além de seus muros, é, em síntese, onde se constrói o que a universidade tem de diferente e de maior potencialidade. O pior disso, é que ao desvalorizar toda essa diversidade, se finda por assassinar a própria aula, que inevitavelmente se torna monótona, repetitiva e puramente doutrinária. 
            É diante de tudo isso que acredito poder explicar quem somos. Somos fundamentalmente inconformados. Unidos por um sentimento comum de inquietação, não dispostos a passividade e incapazes de ver aporia no mundo. Insistimos em brotar do asfalto! Acreditamos que é a união dos descontentes que pode produzir algum contentamento. Organizamo-nos em grupo para produzir nossa identidade por meio da convivência de pluralidades. Certamente não carregamos conosco a verdade, não temos as soluções e nem conhecemos o caminho a seguir. Apenas acreditamos que sozinhos não se pode encontrar nenhuma verdade, não se chega a qualquer solução e nem se tem fôlego para percorrer qualquer caminho.
            Negamos a delegação de responsabilidade política para um representante, por que temos a convicção de que por mais que ninguém seja imprescindível para o transcorrer do processo histórico, tod@s são insubstituíveis e tem contribuições singulares para transformar a realidade do mundo.
            Por fim, não pretendemos impor uma opinião, nos recusamos a inverter a lógica da doutrinação para nossos ideais, mas esperamos ao menos causar inquietação. Desse ponto não desistiremos, partimos sempre da idéia mínima em comum de que há algo muito errado na PUC. Se na tentativa de transformá-la iremos ou não obter êxito não é o fundamental.  Não guiamos nossa atuação pautada pelo ideal de eficiência. O atuar político não pode se curvar a essa forma de censura. Aquilo que nos motiva é o simples imperativo de que não conseguimos ficar calados diante de nossas indignações. Sendo assim, é melhor qualquer derrota em batalha do que a capitulação.
            Esperamos que vocês não tenham medo de sentir a mesma inquietação que nós, que não permitam que a escuridão da PUC encolha seu espírito e nem acreditem em quem afirma possuir a luz – vale lembrar que não é apenas a escuridão que cega.
            Acreditamos que tudo que temos a oferecer é uma idéia, idéia de fazer política enquanto sujeitos livres e que encontram um no outro a inspiração e coragem para lutar pelo que parece impossível. Lutar para que as próprias barreiras do possível sejam alargadas fazendo do impensável realidade.            
            Prazer, somos a Construção Coletiva, vocês podem sempre encontrar um dos rosinhas nos corredores ansioso para conversar e para construir com todos que estiverem dispostos, sintam-se convidados para aparecer em todas as nossas reuniões. Peço, por fim, que não se espantem com nossa cor, o rosa é fundamentalmente para lembrar que ainda há cores na PUC além do cinza, e como já dissemos, insistiremos em brotar do asfalto, por que ainda que pisoteiem todas as rosas, ninguém pode deter a primavera!

“Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens macias avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.”
(Drummond)

Para aqueles que se interessarem, a Construção Coletiva está organizando agora no mês de julho um pequeno curso de formação política. Veja aqui quando serão as reuniões e os temas em cada dia.


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Ivan Sampaio

quarta-feira, 15 de junho de 2011

Decência: Uma Doença Degenerativa

Pretendo nesse breve artigo[1] fazer alguns comentários a respeito da obra A Morte de Ivan Ilitch do escritor russo Lev Tolstói.
            Inicio assim por uma dificuldade primeira de catalogar a narrativa em algum gênero literário preciso. Não se trata propriamente de um romance, vez que a continuidade narrativa preponderantemente em seqüência de ações, bem como o número de capítulos e o enredo centrado em apenas um fato principal não nos permitiria rotulá-la dessa maneira. Seria possível tratar A Morte de Ivan Ilitch enquanto conto, como muitos fazem, ou ainda como novela, vez que a trama se desenvolve propriamente em torno de um único personagem. Para não ter que entrar propriamente nessa discussão sobre a classificação da obra em um gênero, o que não é a minha proposta aqui, tomarei a liberdade de referir-me à obra apenas enquanto narrativa.
            Em apertada síntese podemos afirmar que a narrativa trata do “processo de morte” do protagonista Ivan Ilitch, Juiz de Tribunal da Russia Imperial. A narrativa tem início exatamente com o fato da morte do protagonista no primeiro capítulo. A partir daí, autor passa, nos capítulos seguintes, a narrar a vida desse personagem e todo o seu processo de crescimento (pessoal e profissional) e de definhamento provocado por uma doença de diagnóstico incerto. Ao termo da narrativa, chega-se novamente ao óbito, antecedido de intensa agonia, do protagonista.
            Em primeiro lugar o que quero destacar sobre esta narrativa é a ênfase que o autor dá à preocupação de Ivan Ilitch com “levar uma vida decente”. O personagem coloca a decência como uma prioridade constante, manifesta em quase todas as suas decisões. É importante salientar que não se trata apenas de uma decência aparente, mas sim de uma tentativa de ser um homem correto, de guiar sua vida dentro de princípios morais aceitos e louvados socialmente. Assim, não se trata de um personagem que esconde uma perversão intima atrás de uma cortina de moralidade, mas de alguém que efetivamente busca ser decente e não apenas parecer descente.   
            Toda essa decência e moralidade que permeiam a vida do personagem, prima facie, não parecem, entretanto, torná-lo pessoa amargurada ou recalcada. Ao contrário, Ivan Ilitch é descrito como “um homem capaz, alegre, bonachão, comunicativo, mas um severo cumpridor daquilo que considerava seu dever.” [2]
            Diante disso Ivan Ilitch é apontado precisamente como aquele que constrói uma vida decente. Casa-se, sem grandes paixões, mas não por interesse. Tem filhos e segue sua carreira.

“Ivan Ilitch já começava a pensar que o casamento não só não infringiria o caráter de vida leve, agradável, alegre e sempre descente e aprovada pela sociedade, que ele considerava inerente à existência em geral, mas ainda o reforçaria.” [3]

            A narrativa não é puramente linear e ascendente, o protagonista tem momentos de descontentamento, seja em âmbito domestico ou profissional. Mas fato é que, no momento em que Ivan Ilitch consegue, finalmente, ser promovido para o cargo de Juiz de Tribunal parece, que de certa forma, os problemas que afligem sua vida são superados e essa promoção dá certo conforto e estabilidade maior em sua vida. “Ivan Ilitch via com alegria (...) que novamente a vida dele, que sofrera um lapso, adquiria um caráter autêntico, que lhe era peculiar, de alegria, encanto e decência.” [4]  
            Ivan Ilitch se muda então para São Petesburgo. Nessa mudança é importante observar que, o zelo que o Juiz de Tribunal tem ao decorar sua nova casa, parece ser o contorno final, o acabamento caprichoso da completude de sua vida e de seus objetivos.  Nesse ponto é como se Ivan Ilitch tivesse completado o sentido de sua vida. É precisamente aqui também que acredito estar marcado o início do seu processo de declínio. A trama da narrativa dá a entender[5] que foi um pequeno acidente domestico sofrido por Ivan Ilitch enquanto decorava sua casa que desencadeou a doença que finda por matá-lo. Sendo assim, ao mesmo tempo que a decoração de sua residência representa a completude de seu projeto de vida, significa igualmente o marco inicial de sua desgraça.
            Nesse ponto julgo adequado tratarmos um pouco melhor esse tema que enunciei, a decência. Acredito podermos traçar aqui um paralelo entre a decência e a idéia hegeliana de “consciência natural”.
            De maneira sintética podemos afirmar que para Hegel a “consciência natural” seria o senso comum, o saber que toma verdades circunstanciais e históricas e trata-as como absolutas. “A consciência natural vai mostrar-se como sendo apenas conceito do saber, ou saber não real” [6].
            Pois bem, já a idéia de decência seria uma forma de gerir a vida em conformidade com ditames oriundos do próprio senso comum, ou da “consciência natural”. Ivan Ilitch parece o tempo todo retirar das expectativas provenientes da “consciência natural” de seu tempo a inspiração para construir sua vida. Ele próprio, inclusive, trata essa forma de vida, construída pelo seu tempo e escolhida por ele, como se ela fosse “natural”. Basta retomarmos a passagem que já mencionamos sobre como o protagonista da narrativa entendia o seu casamento: “inerente à existência em geral”. Trata-se assim de uma evidente naturalização de uma forma de vida que é não “natural”, mas historicamente construída, concretizada.
            Nesse ponto creio podemos dar os nomes cabíveis. A sociedade que tratamos aqui é a sociedade moderno-burguesa, erguida em valores que o protagonista Ivan Ilitch trata como absolutos e se mostra incapaz de ver o seu conteúdo “concreto” [7]. Sendo assim, a vida decente que o protagonista busca nada mais é que uma vida “alienada”, presa dentro da “consciência natural”. É justamente na completude maior da “vida descente” que os primeiros sintomas da “doença” do protagonista começam a se manifestar.
            A partir então do manifestar da doença, Ivan Ilitch começa a ter uma série de percepções que antes não pareciam possíveis. Farei referência a duas que julgo mais elucidativas desse processo.
            A primeira delas surge do contato de Ivan Ilitch com seus médicos. A narrativa mostra exatamente uma grande contradição entre os diagnósticos e tratamentos médicos da doença do protagonista. Mas, o ponto que julgo interessante é a forma de sujeição na qual Ivan Ilitch se percebe perante o próprio saber médico. Ivan Ilitch se dá conta que se encontra em posição de absoluta submissão perante um agente (o médico) que poderá tomar atitudes decisivas para a manutenção ou não de sua vida e que ele não é capaz de compreender praticamente nada das próprias decisões tomadas com base nesse conhecimento médico. Além disso, esse esculápio opera sua técnica com uma manifesta indiferença, como se o que estivesse em questão não representasse valor algum.

“Tudo isto era exatamente o mesmo que o próprio Ivan Ilitch fizera mil vezes, com o mesmo brilhantismo, em relação a um acusado. De maneira igualmente brilhante, o doutor fez o seu resumo e, com ar triunfante, alegre até, lançou um olhar por cima dos óculos, par o acusado. Ivan Ilitch concluiu desse resumo que as coisas iam mal, embora isso fosse indiferente ao médico e talvez a todos os demais. E essa conclusão impressionou Ivan Ilitch morbidamente, despertando nele um sentimento de grande comiseração por si mesmo e de profundo rancor contra aquele médico, tão indiferente a uma questão de tamanha importância.” [8]                                                         
                                           
            Como podemos perceber pelo fragmento do texto, o protagonista chega a perceber a semelhança entre a atitude do médico e a sua própria conduta enquanto juiz no tribunal. Aqui acredito poder mencionar o tema da “alienação”, em âmbito mais preciso.
            Trata-se da alienação provocada no sujeito que opera uma técnica na modernidade. Falemos especificamente dessa “técnica”, já que o domínio de saber do protagonista também é tratado por ele (não só por ele, mas pelo se tempo) como técnica.
            A primeira pergunta cabível é o que é técnica? De forma bastante simples creio poder dizer que técnica é “um procedimento ou o conjunto de procedimentos que têm como objetivo obter um determinado resultado”. Se a técnica é um conjunto de meios, já vemos que, com a própria constituição de um saber técnico, se procede uma separação, uma cisão entre meios e fins. 
            É precisamente essa separação que permite ao operador da técnica dominar meios para os quais desconheça os fins. Nesse sentido nos aproximamos da alienação em sentido marxista, a alienação no âmbito da produção (aqui não produção necessariamente fabril, mas sim produção de um resultado “abstrato” [9] qualquer, de um ato de “estranhamento” [10]).
            Ainda assim, também se trata aqui da “alienação” no sentido hegeliano, pois, no momento em que o operador domina a técnica (os meios) e desconhece seus fins (ou apenas não os conhece da mesma maneira que domina o saber técnico) surge uma idéia de aprimoramento técnico, de desenvolvimento e de produção eficiente de fins que já são dados. Ou seja, essa cisão entre meios e fins termina produzindo uma “naturalização” dessas finalidades.
            É por isso que o operador da técnica fica também alienado no âmbito da “consciência natural” vez que passa a tratar como inerente (ou natural) algo que é “concreto” [11], algo que foi constituído historicamente.
            Ivan Ilitch consegue ter, em parte, essa percepção do médico; e consegue mesmo se enxergar como agente de prática similar. Mas ele se encontra tão aprisionado, tão “alienado” dentro da reprodução e da “consciência natural” que essa percepção inicial não é capaz de provocar mudanças na forma como ele mesmo exerce seu ofício de magistrado.
            Uma segunda percepção que creio ser relevante destacar é a forma como o protagonista passa a lidar com seu criado Guerássim. Guerássim é o serviçal que aparece na narrativa como um criado que cuida de Ivan Ilitch, em especial nos momentos em que a enfermidade do protagonista já se manifesta de forma praticamente terminal. Guerássim é alguém que se aproxima de Ivan Ilitch e mantém com ele uma relação (talvez a única da narrativa) humana, reconhecidamente humana.
            Apesar da sua posição de serviçal. Guerássim consegue se identificar com Ivan Ilitch, se ver nele e manter uma relação com o patrão doente que parece estar fora dos limites rígidos da alienação. A preocupação, tanto de Guerássim quanto de Ivan Ilitch um com o outro não esta ligada nem a uma perspectiva técnica, nem a uma idéia de decência.

“[Guerássim expressava assim que] o trabalho não lhe pesava justamente por ser feito para um moribundo, e que tinha esperança de que também para ele alguém faria aquele trabalho, quando chegasse o seu dia.” [12]
    
            O criado por diversas vezes aparece na narrativa suspendendo os pés do patrão a pedido dele. Essa prática não é orientada pela técnica médica (o próprio médico afirma a inutilidade do procedimento com certo deboche) e nem tão pouco em uma idéia de decência, vez que essa vontade de Ivan Ilitch é vista, pejorativamente, como mero capricho de um doente.
            Essa relação com o criado, apesar de representar certo alívio para Ivan Ilitch, e mesmo produzir certa identidade entre ambos não é suficiente, também, para redimir o moribundo, para fazê-lo compreender ou ainda superar de fato a sua alienação no âmbito da “consciência natural”. Acredito que Ivan Ilitch consiga chegar apenas no ponto da dúvida. Para explicar isso vamos então propriamente aos efeitos que a doença parece provocar no personagem.
            Com o progredir da doença Ivan Ilitch paulatinamente começa a se questionar, a colocar em dúvida as suas escolhas de vida, a forma como levou sua vida. Esses questionamentos permitiram que ele percebesse que tudo aquilo que ele construiu, toda sua preocupação com a decência, com uma vida descente, em verdade estava fundada em uma sociedade operada pela hipocrisia. Ele consegue, aos poucos se dar conta que sua vida é e foi uma mentira; que a decência em si só existe na medida em que as relações humanas conservam, em igual proporção, uma hipocrisia, uma mentira necessária.
            Ivan Ilitch passa a duvidar, dos médicos, por exemplo. Perde a confiança na medicina.

“- Piotr, dê-me o remédio. ‘Por que não? Talvez o remédio ainda ajude.‘ Tomou a colher, engoliu. ‘Não, não me ajudará. Tudo isso é bobagem, mentira – decidiu ele, apenas sentiu o gosto conhecido, muito doce, desesperador.” [13]        

O protagonista consegue também ver a mentira em sua família. Para Ivan Ilitch essa mentira significa enorme sofrimento. É imperdoável que todos saibam da sua morte iminente e insistam em se comportar como se a doença fosse passageira.
Em síntese, parece tratar-se de verdadeira “dúvida hiperbólica” [14] que com o avançar da doença vai abrangendo mais aspectos da vida de Ivan Ilitch. Ainda assim, essa dúvida não parece permitir que o protagonista supere definitivamente a barreira da decência; mesmo já muito debilitado e com a percepção da hipocrisia que o circula.

“(...) ele estava a um fio de cabelo de gritar-lhes: deixem de mentir, vocês sabem e eu sei também que estou morrendo, pois então deixem pelo menos de mentir. Mas ele nunca teve ânimo de fazê-lo. Por meio daquela mesma ‘decência’ a que ele servira a vida inteira (...)” [15]         

                Nesse percurso de questionamento creio que Ivan Ilitch conseguiu ao fim chegar a uma negação da forma descente que sempre tinha procurado viver. Acredito que ele foi capaz de atingir uma espécie de niilismo, mas isso sem se libertar verdadeiramente da alienação da “consciência natural”. Penso que Ivan Ilitch não foi capaz de perceber que “a apresentação da consciência não verdadeira em sua inverdade não é um movimento puramente negativo.” [16] É como se sua percepção só tivesse-o feito perceber “o cepticismo, que vê sempre no resultado somente o puro nada, e abstrai de que esse nada é determinadamente o nada daquilo de que resulta.” [17]
            Ivan Ilitch se aproxima mesmo da pretensão cartesiana e insiste em buscar na sua dúvida a afirmação (ou reafirmação) dos próprios objetos de negação. Com isso não consegue observar o significado próprio do seu ato. “O cepticismo que termina com a abstração do nada ou do esvaziamento não pode ir além disso, mas tem de esperar que algo novo se lhe apresente – e que novo seja esse – para jogá-lo no abismo vazio.”[18]    
            Dessa maneira, tudo que Ivan Ilitch consegue ao negar a idéia de decência, sem superar a “consciência natural” para perceber o real significado e conteúdo dessa negativa, é atingir o desespero. O protagonista parece apenas chegar nesse ponto escuro de dúvida absoluta onde não pode se apoiar em qualquer realidade, onde as verdades foram destruídas, mas a compreensão maior do significado dessa destruição não foi alcançada.
            Nesse momento de desespero só resta a Ivan Ilitch gritar de forma agonizante e buscar alguma redenção num pedido de desculpas por uma vida vazia destinado a interlocutores incapazes de perceber seu significado.
            Ivan Ilitch não é capaz de perceber que a sua doença era a própria decência, que ela degenerou-lhe o espírito muito antes de consumir seu corpo enfermo.
            Morre então Ivan Ilitch sem conseguir ir além do cepticismo alienado fruto da “dúvida hiperbólica” da modernidade.                                                    

Ivan Sampaio

[1] Esse artigo foi apresentado como trabalho final na Disciplina Direito e Literatura I da minha Graduação em Direito na PUC/SP. Gostei do que escrevi então fiz apenas algumas pequenas simplificações para postá-lo aqui. Por esse motivo é um texto bem maior que as demais postagens. De qualquer forma achei um bom motivo para tentar retomar esse blog que lamentavelmente deixei tanto tempo abandonado.   
[2] TOLSTÓI, Lev. A Morte de Ivan Ilitch. Editora 34. 1ª edição. São Paulo/SP – 2006. P.18.
[3] TOLSTÓI, Lev. A Morte de Ivan Ilitch. Editora 34. 1ª edição. São Paulo/SP – 2006. P. 23/24.
[4] TOLSTÓI, Lev. A Morte de Ivan Ilitch. Editora 34. 1ª edição. São Paulo/SP – 2006. P.29.
[5] A narrativa não atribui diretamente à queda sofrida pelo protagonista o degringolar de sua doença, mesmo os médicos não afirmam isso. Acredito, entretanto, que é um fator a ser subentendido. A queda pode não ter causado a doença, mas certamente simboliza sua causa. Creio que essa passagem possa ficar mais clara em momento posterior desse trabalho.     
[6] HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do Espírito. Editora Vozes. 1ª edição. Petrópolis/RJ – 1992. P. 66   
[7] Para Hegel a palavra “Concreto” é usada no sentido de “aquilo que cresce junto”. Sua origem vem de concrescência, daquilo que se agrega historicamente ao objeto e, dessa maneira, o constituí.      
[8] TOLSTÓI, Lev. A Morte de Ivan Ilitch. Editora 34. 1ª edição. São Paulo/SP – 2006. P. 38.
[9] Aqui “abstrato” usado no sentido hegeliano de “aquilo que foi colocado para fora” aquilo que é produto de um ato de “estranhamento”.   
[10] Estranhamento aqui usado em dois sentidos. O primeiro hegeliano que usa o termo como “o ato de colocar para fora” de produzir algo. O segundo no sentido marxista que é a incapacidade do sujeito de reconhecer o produto do seu trabalho. 
[11] Cf. nota no 7
[12] TOLSTÓI, Lev. A Morte de Ivan Ilitch. Editora 34. 1ª edição. São Paulo/SP – 2006. P. 56/57.
[13] TOLSTÓI, Lev. A Morte de Ivan Ilitch. Editora 34. 1ª edição. São Paulo/SP – 2006. P. 58.
[14] DESCARTES, René. Meditações. Editora Nova Cultura. Coleção Os Pensadores. São Paulo/SP – 2004. Primeira Meditação.     
[15] TOLSTÓI, Lev. A Morte de Ivan Ilitch. Editora 34. 1ª edição. São Paulo/SP – 2006. P. 56.
[16] HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do Espírito. Editora Vozes. 1ª edição. Petrópolis/RJ – 1992. P. 67
[17] HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do Espírito. Editora Vozes. 1ª edição. Petrópolis/RJ – 1992. P. 67
[18] HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do Espírito. Editora Vozes. 1ª edição. Petrópolis/RJ – 1992. P. 67