domingo, 31 de julho de 2011

Pierre Clastres leitor de La Boétie: Antropologia e Política

Obs: Hoje publico aqui esse pequeno ensaio que escrevi como trabalho para o curso de Filosofia da USP. É um textinho bem modesto e que fiz algumas pequenas adaptações para postá-lo aqui. Nele fiz a leitura de um escrito belíssimo que é o "Discurso da Servidão Voluntária" do La Boétie. Faço essa postagem mais para não perder o texto e para não desperdiçar um escrito com apenas uma nota no sistema Jupterweb da Universidade de São Paulo. Segue o texto.      


Pierre Clastres leitor de La Boétie
Antropologia e Política

            Pretendemos, nesse estudo, fazer uma leitura em conjunto do Discurso da Servidão Voluntária[1] de Etienne de La Boétie com os textos Liberdade, Mau encontro, Inominável[2] e Troca e Poder: filosofia da chefia indígena[3] ambos de Pierre Clastres.
            Antes de iniciar propriamente a comentar o texto do La Boétie, é preciso fazer uma breve referência ao pensamento de sua época. Quero destacar aqui a idéia de história que se mostra preponderante no período da renascença. Acredito que seria demasiadamente anacrônico olharmos para a renascença e para os autores desse período e atribuir a eles concepções de relativismo histórico e cultural como as que foram desenvolvidas, em grande parte, apenas pela antropologia moderna.
            Nesse sentido, é preciso destacar que durante o período renascentista a história é vista como “circular”, ou seja, se busca a repetição, os fatos recorrentes, imutáveis ou atemporais. Podemos mencionar aqui o termo universalismo histórico como o pensamento marcante desse período. A título de exemplo é cabível olharmos para a obra do próprio Maquiavel, no tocante à história, creio que ele representa muito bem essa concepção universalista renascentista.
“Quem estudar a história contemporânea e da antiguidade verá que os mesmos desejos e as mesmas paixões reinaram e reinam ainda em todos os governos, em todos os povos. Por isso é fácil, para quem estuda com profundidade os acontecimentos pretéritos, prever o que o futuro reserva a cada Estado, propondo os remédios já utilizados pelos antigos ou, caso isto não seja possível, imaginando novos remédios, baseados na semelhança dos acontecimentos. Porém, como estas observações são negligenciadas (ou aqueles que estudam não sabem manifestá-las), disto resulta que as mesmas desordens se renovam em todas as épocas.” [4]                       
            Dessa maneira, acredito que La Boétie, inserido nesse período, compartilhava da mesma concepção universal. O próprio Pierre Clastres ao comentar o Discurso da Servidão Voluntária afirma que:

“(...) ele [La Boétie] coloca uma questão totalmente livre porque absolutamente liberta de toda ‘territorialidade’ social e política e é porque sua questão é trans-histórica que somos capazes de ouvi-la.” [5]      

            Dito isso, a pergunta que surge é: que questão é essa que podemos ouvir, que parece ser capaz de transpassar o tecido da história e chegar até nossos dias?
            Esse questionamento é: “como pode ser que tantos homens, tantos burgos, tantas cidades, tantas nações suportam às vezes um tirano só, que tem apenas o poderio que eles lhe dão, (...)” [6]. Colocada nos termos de Clastres: “Como é possível, pergunta La Boétie, que a maioria obedeça a um só, que não somente obedeça mas o sirva, não somente o sirva mas queira servi-lo?”[7]  
            Essa questão pode ser desdobrada em duas outras: Como os homens perdem sua liberdade e caem na servidão e como a servidão persiste se só depende da vontade dos homens retomar sua liberdade. No Discurso, La Boétie busca uma resposta para a segunda questão, mas no atinente à primeira ele apenas afirma que o início da servidão se deu por um “mau encontro”: “que mau encontro foi esse que pôde desnaturar tanto o homem (...)”[8].
            A preocupação de Le Boétie parece se voltar mais para uma crítica da tirania do que precisamente para explicar suas origens. Nesse ponto o Discurso destoa completamente da literatura política de seu tempo[9].
            Um debate comum dos autores da renascença girava, precisamente, em torno de que forma de governo seria mais apropriada para a formulação do Estado bom e belo. La Boetie, logo nas primeiras páginas de seu escrito, descarta esse questionamento e coloca a monarquia, a aristocracia e a democracia como formas de sujeição do homem. Assim, para La Boétie, a servidão está presente em qualquer forma de governo, e a tirania é uma imanência do próprio governo. Sendo assim, sua crítica a tirania é uma crítica ao próprio Estado e não a uma forma específica de exercício do poder político.
            Apesar de não responder o que ocasionou o “mau encontro”, La Boétie consegue caracterizar muito bem as conseqüências desse infortúnio. Penso que a palavra chave nesse assunto é “desnaturação”. Para La Boétie o homem é “o único nascido para viver francamente” [10] e o “mau encontro” fez-lo “perder a lembrança de seu primeiro ser e o desejo de retomá-lo” [11]. Assim o “mau encontro” viria na contra mão da própria essência humana, e teria a capacidade de produzir uma condição artificial que suprimiria do homem sua natureza, tornando-o assim “desnaturado”.
            Voltando-nos novamente à temática do caráter “trás-histórico” do Discurso, podemos perceber que, ao se utilizar de ferramentas lógico-dedutivas e tentar colocar seu pensamento em âmbito universal, La Boétie percebe exatamente
“(...) que a sociedade na qual o povo quer servir ao tirano é histórica, que não é eterna (...) que possui uma data de nascimento e que algo deve ter necessariamente se passado para que os homens caiam da liberdade na servidão.” [12]                                               
           
            Assim, o “mau encontro” longe de provir da naturalidade, atenta ou distorce a própria natureza do homem e formula uma artificialidade com pretensão de se fazer natural.
            Essa “desnaturação” do homem antecipa algumas empresas filosóficas muito posteriores (segundo Clastres o pensamento de Nietzsche e Marx). Refiro-me aqui as idéias de alienação e de decadência. Sobre a alienação em especial, há uma passagem que já aponta para essa categoria, ainda que não se refira a ela pelo nome. “Os livros e a doutrina dão aos homens, mais que qualquer outra coisa, o sentido e o entendimento para se reconhecerem e odiar a tirania;” [13]. A palavra central nesse fragmento é “se reconhecerem”, uma idéia bastante forte que justamente romperia com um estado de alienação (aqui talvez no sentido mais hegueliano que propriamente marxista).
            O ponto é que em La Boétie essas idéias já estão embrionariamente apontadas, e a conseqüência de todas essas mazelas provenientes da servidão é uma sociedade dividida entre os que mandam e os que obedecem. Pior do que isso se trata de uma naturalização da “desnaturação” humana. O “mau encontro” provoca de tal forma o esquecimento da liberdade que a servidão passa a ser vista como natural. “A desnaturação consecutiva ao mau encontro engendra um homem novo, de tal modo que nele a vontade de liberdade dá lugar à vontade de servidão.” [14]    
            Disso parece resultar que a passagem pelo “mau encontro” se da apenas em um sentido. Diante de tudo isso, Clastres se volta para as sociedades ditas “primitivas”, as “sociedades sem Estado” para observar como se da à vida sem essa passagem. Observe que não se trata de observar a sociedade antes do “mau encontro”, mas uma sociedade sem esse acontecimento. A idéia aqui é que não é por falta de capacidade que essas sociedades “primitivas” não instituíram um Estado e que um dia chegarão nesse patamar de evolução. Trata-se sim de uma recusa dessa instituição.
            Clastres se volta para as sociedades indígenas sul-americanas e observa, nessas comunidades, grande peculiaridade no atinente ao poder atribuído ao chefe indígena. A curiosidade é precisamente que a chefia, por vezes, chega a se assemelhar com uma servidão. Trata-se da “(...) estranha persistência de um ‘poder’ quase impotente, de uma chefia sem autoridade, de uma função que funciona sem conteúdo.” [15]
            Não intento aqui reconstruir o percurso percorrido por Clastres em seu texto para explicar o emaranhado complexo de estruturas de troca e de exclusão da troca que explicam os maios pelos quais se constitui essa função da chefia. O ponto que quero tomar é que Clastres coloca que o meio pelo qual essas sociedades indígenas conseguem produzir um chefe impotente é excluindo do jogo social o poder político; tonando esse poder externo à própria dinâmica da vida social.
            “É por ser de alguma forma imanente ao grupo que a função política poderá manifestar-se de maneira efetiva.” [16] Assim, Clastres coloca que o “mau encontro” firma o poder político, a servidão, como imanente no homem “desnaturado”. Já as sociedades “primitivas” parecem criar estruturas que colocam o poder político num lugar exterior; trata-se de um esforço para não permitir que o poder político (a tirania) se torne imanente.
“(...) essa função política, nas sociedades indígenas, está excluída do grupo, e até mesmo o exclui: é portanto na relação negativa mantida com o grupo que se enraíza a impotência da função política; a rejeição desta para o exterior da sociedade é o próprio meio de reduzi-la à impotência.” [17]    
            Assim, para Clastres as sociedades ditas “primitivas” criam mecanismos (ou estruturas) que parecem permanentemente reprimir o desejo de submissão dos homens. Elas “recusam a relação de poder, impedindo o desejo de submissão de se realizar.” [18].
            Dessa maneira, não significa que os desejos de poder e de submissão não existam, muito pelo contrário. O desejo parece existir e é o esforço social de reprimi-lo que assegura a não concretização do “mau encontro”. Essa seria assim a prova maior de que “(...) não é necessário ter feito a experiência do Estado para recusá-lo, ter conhecido o ma encontro para conjurá-lo, ter perdido a liberdade para reivindicá-la.” [19] 
            Retornando agora para o La Boétie, por óbvio ele não tem o conhecimento antropológico e nem teve acesso a material etnográfico que o permitisse uma análise detida das sociedades “primitivas”. Ele pode ter tido conhecimento da literatura das grandes navegações do Sec. XVI, mas isso não seria suficiente para uma análise tão detida e ainda assim o seu método era outro. Como mencionamos no início, a sua trajetória passa por uma concepção histórica universalista e um método de análise dedutivo. Ainda assim, a questão que ele propõe abordar penetra profundamente nesse homem que serve, que é um homem historicamente localizado.
            O enigma da servidão que La Boétie coloca é singular em seu tempo e nos assombra até hoje. Para o próprio Clastres tratar-se-ia do início de uma “decadência irresistível” marcada pelo “mau encontro” sem retorno.
            É então descrevendo as mazelas de uma sociedade servil que La Boétie traça o que acredito poder ser os primeiros rascunhos teóricos do homem moderno, que imerso na servidão se degrada e se aliena. Para Clastres, então, as sociedades sem Estado reprimem os “maus desejos” produzindo uma sociedade irrequieta onde “o poder, paradoxal em sua natureza, é venerado em sua impotência” [20]. Trata-se assim da caracterização de uma servidão voluntária em La Boétie que parece ser constantemente evitada pelas sociedades “primitivas” em Pierre Clastres.                                                                                            

Ivan de Sampaio


[1] LA BOÉTIE, Etienne de. Discurso da Servidão Voluntária (Manuscritos De Memes) 2ª ed. São Paulo/SP: Brasiliense, 1982. P. 11/37     
[2] CLASTRES, Pierre. Liberdade, Mau encontro, Inominável in: LA BOÉTIE, Etienne de. Discurso da Servidão Voluntária 2ª ed. São Paulo/SP: Brasiliense, 1982. P. 109/123.
[3] CLASTRES, Pierre. A Sociedade Contra o Estado: pesquisa de antropologia política 5ª Ed. Brasil: Editora Francisco Alves, 1990. Cap. 02. Pag. 21/35.     
[4] MACHIAVELLI, N. Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio: “Discorsi”. Brasília: Editora Universidade de Brasília; 1982. Livro 1º, Cap. XXXIX, P. 129. 
[5] Cf. nota no 02. P. 109.
[6] Cf. nota no 01. P. 12     
[7] Cf. nota no 02. P. 109/110
[8] Cf. nota no 01. P.19.
[9] Não que a literatura da renascença buscasse explicar a origem do Estado, mas a crítica ao Estado em si é que torna o Discurso um escrito singular desse momento histórico.  
[10] Cf. nota no 01. P.19.
[11] Cf.. nota no 01.P.19.
[12] Cf. nota no 02. P.110
[13] Cf. nota no 01. P.24
[14] Cf. nota no 02. P.115
[15] Cf. nota no 03. P. 22/23.
[16] Cf. nota no 03. P. 31.
[17] Cf. nota no 03. P. 31.
[18] Cf. nota no 02. P.117.
[19] Cf. nota no 02. P.117.
[20] Cf. nota no 03. P.34/35.

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