sexta-feira, 12 de agosto de 2011

O Conhecimento do Espírito Objetivo: um breve ensaio sobre a Introdução à Filosofia do Direito de Hegel

Obs: Esse texto é mais um trabalho acadêmico. Foi feito para um curso que fiz na faculdade de filosofia da PUC/SP como disciplina optativa livre da minha graduação em direito, ministrado brilhantemente pelo Professor Dr. Cassiano Terra Rodrigues do departamento de filosofia. Trata-se apenas de uma leitura inicial do Hegel. Consegui, ao final, ousar um pouco e fazer uma breve crítica a concepção de Direito enquanto técnica. Também formulei, em linhas bastante gerais, uma justificativa hegeliana para o direito penal. Pessoalmente, sou um defensor do abolicionismo penal, mas achei interessante a dedução possível das funções penais dentro do sistema de Hegel. Segue o texto.              
Obs 02: Aproveito para recomendar a leitura da coluna de cinema do Prof. Cassiano no Correio da Cidadania.               




O Conhecimento do Espírito Objetivo  
Um breve ensaio sobre a Introdução à Filosofia do Direito de Hegel

            Em uma primeira aproximação da obra hegeliana, acredito que já seja possível tomarmos como lição que o conhecimento filosófico só se constitui verdadeiramente na forma do sistema. É precisamente a demonstração da necessidade das partes perante o todo que podemos ver ser construído o próprio conhecimento filosófico. Dessa maneira, o objetivo que tenho aqui nesse trabalho pode ser dividido em apenas dois momentos. Primeiro quero observar como a obra Introdução à Filosofia do Direito[1] pode ser vista dentro do sistema filosófico formulado por Hegel. Em segundo lugar, penso ser possível formular uma pequena linha crítica à forma que tratamos o Direito hoje com base na leitura sistêmica dessa Introdução.
            Para entender o objetivo desses parágrafos de introdução (§ 01-33) precisamos retomar uma distinção feita por Hegel no §1 da Ciência da Lógica[2]. Nesse parágrafo referido é feita a diferenciação entre a filosofia e a ciência. “A filosofia não tem a vantagem, de que gozam as outras ciências de poder pressupor seus objetos como imediatamente dados pela representação.” [3] Tendo em vista então que o que Hegel pretende, em sua Filosofia do Direito, é fazer “ciência filosófica” ele não pode, de antemão, pressupor o conteúdo objeto de estudo.
            Dessa maneira, a Introdução à Filosofia do Direito pretende reconstruir o processo de formação do conteúdo que será objeto da “ciência filosófica” do direito. Como ciência filosófica “ela tem de dirigir o seu olhar ao próprio desenvolvimento imanente da coisa mesma.” [4] 
            É preciso ressaltar por sua vez que “a ciência do direito é uma parte da filosofia” [5]. Enquanto ciência ela tem um ponto de partida dado, ou seja, pressupõe seu objeto. Dessa forma “a tarefa da Introdução é [também] situar esse ponto de partida [a ciência do direito] no todo do saber filosófico.” [6]   
            Em decorrência dessas pretensões é que a Introdução não pode ainda ser vista como “ciência filosófica do direito”, mas apenas como exterior e necessariamente anterior a ela. O conceito ainda precisa ser demonstrado aqui em sua concretude, em sua articulação que levou ao “ser ai” do objeto.
            O objeto da filosofia do direito é então o Direito; mas o Direito enquanto “espírito objetivo”, ou seja, colocado entre o “espírito subjetivo” e o “espírito absoluto”. Dessa maneira o Direito, ou melhor, a filosofia do direito no sistema hegeliano “não trata da totalidade do mundo cultural, por que o reino do direito é apenas uma parte do reino do Espírito.” [7] Para Hegel o “espírito absoluto” poderia ser, de certa forma, atingido apenas pela Arte, que o apresenta[8], pela Religião que o representa e pela Filosofia que o conceitua.    
            Afirmar que o Direito é visto como “espírito objetivo” é então colocá-lo como um ato de estranhamento do espírito, que sai de sua pura subjetividade e se abstrai no mundo. Sua emanação sai, em verdade, da vontade enquanto “espírito subjetivo”. Trata-se aqui então de uma forma de “retomar o princípio da objetivação do espírito subjetivo” [9].
            O ponto de partida então do Direito é “a vontade que é livre, assim que a liberdade constitui sua substância e sua destinação” [10]. A liberdade é então tratada por Hegel como um atributo da vontade, atributo esse que se efetiva, inclusive, por meio da vontade. Por isso que podemos afirmar também que “o sistema do direito é o reino da liberdade efetivada.” [11].
            A vontade enquanto “espírito subjetivo” pode ser vista como uma unidade de dois aspectos distintos. Seria o que Hegel chama de “aspecto universal” da vontade e a vontade particular, ou aspecto individual. Dessa maneira, “o conceito hegeliano de vontade quer mostrar que a vontade tem duplo caráter, constitutivo em uma polaridade fundamental entre elementos particulares e universais.” [12]
            Essa vontade é a vontade livre do sujeito pensante. Nesse sentido cabe retomar a Ciência da Lógica na idéia de que o pensamento é o único reino da liberdade. A vontade é também uma forma de pensamento, um modo do pensar que se expressa na realidade. É através da vontade então que o indivíduo determina suas ações de acordo com sua razão. A esfera do Direito, produto do estranhamento do espírito subjetivo, é então objetivada exatamente por essa vontade livre do indivíduo.[13] 
            Em síntese poderíamos então afirmar que “o espírito objetivo nada mais é do que a apresentação desse movimento do conceito de direito, pelo qual ele, através da sua determinação completa, se efetiva enquanto idéia de liberdade.” [14] O direito emerge então enquanto objetividade proveniente da parte conclusiva da filosofia do “espírito subjetivo”.
            Quando observamos então o objeto com esse rigor do pensamento hegeliano, não podemos deixar escapar também a racionalidade que parece habitar o próprio objeto. Ao tratarmos o espírito objetivo, aqui, enquanto abstração produto desse ato de estranhamento do espírito subjetivo referimo-nos ao Direito. Se formos, por outro lado, nos ater à concretude do espírito objetivo, veremos que a sua manifestação se dá no Estado, vez que é o espírito objetivo visto em sua manifestação histórica e como tal concreta. Falei isso apenas para destacar que, o objeto, como concreto ou abstrato, deve ser tratado necessariamente como racional, pois a sua manifestação histórica, ou seu ato de estranhamento produtivo, não se dão por mera casualidade. É assim tarefa que também compete à filosofia, conseguir entender que a própria realidade é racional, vez que é constituída por meio de uma ordem racional a ser evidenciada através do próprio processo de reflexão do conceito e sua efetividade concreta.
            Esse princípio que move o conceito é o que Hegel chama de “método dialético”. Ele não só dissolve a “consciência natural” [15], mas também produz, “nos permite aprender o conteúdo e o resultado” [16]. É possível ver que o próprio processo de desintegração da consciência natural por meio do “saber fenomenal” [17] já constitui um caminho necessário rumo ao saber verdadeiro. Nesse percurso é preciso perceber que o método dialético não se constitui enquanto a atribuição externa de uma racionalidade para os objetos. “O objeto é por si mesmo racional” [18]; o progredir é imanente e cada etapa necessária do caminhar é gestada e superada. Nesse percurso a tarefa da “ciência filosófica” é “somente trazer à consciência esse trabalho próprio da razão da coisa.” [19]
            Com o espírito objetivado, o que aparece se mostra assim em decorrência de uma lógica imanente ao próprio objeto. Trata-se de uma razão constitutiva do mundo conforme ele se apresenta. Nesse cenário, resta por fim rompida a separação entre aparência e essência. O objeto aparece em decorrência da razão própria de sua essência.      
            Depois de ter feito essa caracterização inicial do que julgo serem os principais pontos a mencionar da Introdução à Filosofia do Direito acredito poder ousar esboçar aqui uma situação que creio poder ilustrar um pouco a passagem do “espírito subjetivo” para o “espírito objetivo” enquanto a efetivação de uma vontade universal capaz de produzir uma ordem jurídica.
            Pensamos na vontade particular. Como Hegel estrutura seu raciocínio, creio podermos afirmar que o método dialético dissolve as particularizações do universal justamente para produção, no caso, de uma ordem jurídica racional que é o Direito, espírito objetivo. Na hipótese então de um indivíduo conseguir efetivar uma vontade particular sua, antagônica a vontade universal[20], creio que o Direito, comumente, denomina tal conduta de delito. Ocorre que a efetivação dessa vontade particular, inaugura, pela sua própria objetivação, outra ordem objetiva, contrária a ordem objetiva universal.
            Diante dessa situação, a ordem jurídica proveniente da vontade universal deve, necessariamente, prever sanções para coibir a proliferação dessas ordens particulares. Sendo assim, toda conduta que emerge como negação do Direito (do espírito objetivo) deve ser negada por uma sanção do próprio direito. Dessa forma se assegura a manutenção da objetivação do universal ao negar tudo àquilo que nega a ordem do espírito objetivo. Está aqui esboçado o fundamento para um Direito sancionador enquanto negação da negação da ordem segundo o pensamento de Hegel.                          
              Agora que já fiz a caracterização que pretendia da Introdução a Filosofia do Direito e até ousei ir um pouco adiante e tentar formular um desdobramento possível das idéias do texto. Dedico esses parágrafos finais para esboçar uma pequena crítica à concepção contemporânea de direito enquanto técnica com base nas idéias do Hegel de consciência natural e alienação.
            Tratarei aqui a palavra técnica de forma bastante simples, apenas enquanto um procedimento, ou o conjunto de procedimentos, que têm como objetivo obter um determinado resultado. Se a técnica é um conjunto de meios, já vemos que, com a própria constituição de um saber técnico, se procede uma separação, uma cisão entre meios e fins. 
            É precisamente essa separação que permite ao “operador” da técnica dominar meios para os quais desconheça os fins. Nesse sentido nos aproximamos da alienação em sentido marxista, a alienação no âmbito da produção (aqui não quero me aprofundar por que o que interessa, por hora, não é o sentido marxista do termo).
            No momento em que o operador domina a técnica (os meios) e desconhece seus fins (ou apenas não os conhece da mesma maneira que domina o saber técnico) começa a surgir uma idéia de aprimoramento técnico, de desenvolvimento e de produção eficiente de fins que já são dados. O operador da técnica, por não precisar assim conhecer as suas finalidades, finda por concentrar suas habilidades no aprimoramento dos meios e, cada vez mais, aceita os fins como dados. Ou seja, essa cisão entre meios e fins termina produzindo uma “naturalização” dessas finalidades.
             É por isso que o operador da técnica fica também alienado no âmbito da “consciência natural” [21] vez que passa a tratar como inerente (ou natural) algo que é concreto, algo que foi constituído historicamente.
            Quando nos referimos ao direito, tratá-lo como uma técnica, como um instrumento, é tolhe precisamente a capacidade reflexiva “em si e para si” do espírito objetivo. Nas palavras de Hegel, ao instrumentalizarmos, por exemplo, a ciência ocorre precisamente a mesma coisa: “por um lado, a ciência pode ser empregada como entendimento servil para fins finitos e meios casuais e assim não adquire sua determinação a partir de si mesma” [22].
            No mais, a própria idéia de alienação, aqui, mantém os operadores da técnica num estado de erro. Podemos lembrar a crítica que Hegel faz na Introdução aos cursos de estética à instrumentalização do conhecimento: “o meio deve ser adequado à dignidade da finalidade, sendo que a aparência e a ilusão não podem gerar o verdadeiro, mas somente o verdadeiro pode gerar o verdadeiro.” [23] É mais uma problemática de tratar o Direito enquanto mera técnica o fato de se utilizar dele para criar uma situação de erro, onde o que deveria ser o espírito objetivo é colocado a serviço do equívoco. Dessa maneira o produtor do falso deve ser igualmente falso. 
            Por fim, reduzir o direito a uma técnica de procedimentos rompe com o próprio método dialético. Uma vez técnica, o objeto não pode mais ser visto como “em si e para si” e dessa forma a sua racionalidade passa a ser atribuída de maneira externa. Ou seja, as finalidades tratadas como naturais são precisamente a atribuição de uma racionalidade exterior ao objeto, trata-se da imposição de uma ilusão racional que substitui a real racionalidade imanente ao objeto. O objeto deixa assim de ser real.
            Dessa forma, ao tratar o direito enquanto técnica não só o operador jurídico se vê alienado na consciência natural, mas o próprio direito se aliena no âmbito de uma racionalidade exterior imposta.  

Ivan de Sampaio


[1] HEGEL, G. W. F. Linhas Fundamentais da Filosofia do Direito ou Direito Natural e Ciência do Estado no Traçado Fundamental. Introdução à Filosofia do Direito (§1-33). In: Clássicos da Filosofia: Cadernos de Tradução nº 10. Tradução de Marcos Lutz Muller. UNICAMP. Campinas/SP. 2005.      
[2] HEGEL, G. W. F. Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Compêndio Volume I Ciência da Lógica. Edições Loyola. São Paulo/SP. 1995.  
[3] Ibidem. P. 39
[4] Cf. nota 01. §2 P.40. 
[5] Cf. nota 01. §2 P.40. 
[6] Cf. nota 01. Apresentação. P. 06 
[7] MARCUSE, Herbert. Razão e Revolução: Hegel e o advento da teoria social. Editora Paz e Terra. 5ª edição. São Paulo/SP. 2004. P. 158   
[8] HEGEL, G. W. F. Cursos de Estética Vol. I. EDUSP. 2ª edição. São Paulo/SP. 2001. Introdução.   
[9] Cf. nota 01. Apresentação. P.07.
[10] Ibidem. §4. P. 47.
[11] Ibidem. 
[12]  Cf. nota 07. P. 165.
[13] Cf. nota 07. P. 163.
[14] Cf. nota 01. Apresentação. P. 08 
[15] HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do Espírito. Editora Vozes. 1ª edição. Petrópolis/RJ – 1992. P. 66   
[16] Cf. nota 01. §31. P. 70.
[17] Cf. nota 15.
[18] Cf. nota 01. §31. P. 70.
[19] Cf. nota 01. §31. P. 70.
[20] Não estou aqui tratando vontade universal como sinônimo de vontade geral. Trata-se do sentido hegeliano do termo que definitivamente não pode ser tratado como generalidade composta por um acordo contratual de particularidades como em Rousseau.  
[21] A consciência natural é apenas “conceito do saber, ou saber não real”. Seria de certa forma o saber no âmbito do senso comum. Uma forma de tomar enquanto absolutas verdades circunstanciais. HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do Espírito. Editora Vozes. 1ª edição. Petrópolis/RJ – 1992. P. 66       
[22] Cf. nota 08. P. 32.
[23] Cf. nota 08. P. 30.

3 comentários:

  1. e aí velhinho, blz? gostei do texto. mas q tal corrigir meu nome? abs

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    Respostas
    1. Amigos, vejam se vocês gostaram?
      - A Coruja Símbolo da Filosofia – e a Minerva
      http://cinenegocioseimoveis.blogspot.com.br/2012/05/coruja-simbolo-da-filosofia-e-minerva.html
      Abraço a Todos
      Osvaldo Aires

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  2. Opa... Corrigido professor. Nem tinha reparado que tinha esquecido o "a".

    Abraço!

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