sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

A Liberdade nos Discursos de Maquiavel


Volto hoje a postar textos aqui para não deixar esse espaço morrer. Publico hoje então um pequeno texto que fiz como um Paper para a disciplina ministrada pelo Prof.Dr. Alberto Ribeiro Gonçalves de Barros no curso de graduação em filosofia da FFLCH/USP. É um trabalho bem simples, uma primeira leitura da primeira parte dos Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio do Maquiavel.       
            Sem mais delongas, segue o texto.

A Liberdade nos Discursos de Maquiavel

            Prima facie, é prudente enunciar que Maquiavel em seus Discursos[1] parece não promover um esforço específico no sentido de definir ou delimitar com precisão um conceito para a palavra liberdade. Independentemente disso, é possível observarmos as formas como essa idéia aparece no texto do autor renascentista.
            A primeira imagem que Maquiavel desenha da liberdade em seus Discursos parece traçar uma oposição. A liberdade é tratada como a antítese da dependência. Maquiavel discorre sobre a fundação das cidades, e ao se referir àquelas edificadas por estrangeiros destaca que “ou o são por homens livres, ou que dependem de outrem” [2].
            Nessa distinção, jaz o princípio do argumento que leva muitos a defenderem que em Maquiavel, a liberdade seria fundamentalmente o autogoverno. Por exemplo, para Skinner, em Maquiavel “dizer que uma cidade tem liberdade é o mesmo que dizer que ela se mantém independente de qualquer autoridade que não seja a da própria comunidade.” [3] Em seguida, o historiador é ainda mais direto ao afirmar que “a liberdade acaba por se identificar com o autogoverno.” [4]
            Certamente para Maquiavel o autogoverno faz parte do que ele entende por liberdade, mas isso não deve ser visto como sua definição em si. Essa liberdade da cidade é vista preponderantemente como meio. Para que a cidade possa atingir a grandeza é necessário que, antes de tudo, ela seja livre; ou seja, que seja a responsável por sua própria direção, que se autogoverne.
            O que não se pode excluir, por outro lado, é que essa liberdade enquanto autogoverno diz respeito fundamentalmente à não dominação da cidade por outra, à manutenção da cidade. Mas, Maquiavel não limita seu olhar a análise da cidade em relação às demais cidades, impérios e principados. Os Discursos do filósofo também tratam do âmbito interior da própria cidade, ou seja, da liberdade dos cidadãos, para além da simples liberdade do corpo político.
            Penso que não é possível ainda falarmos propriamente em liberdades individuais, pois, a verdade é que o próprio termo indivíduo ainda não foi cunhado. Maquiavel propriamente não se refere a indivíduos ou sujeitos, antes da modernidade seria impreciso usar esses vocábulos. Mas veremos nos Discursos a referência a cidadãos, a integrantes do corpo político.
            Antes de entrarmos propriamente nas concepções que Maquiavel traz de liberdade dos integrantes do corpo político (ou cidadãos), vejamos alguns contornos da forma como o filósofo renascentista entende que deve se organizar a cidade.
            De maneira geral, N. Maquiavel se utiliza da classificação aristotélica de governo. Para ele há então três formas “puras” e outras três formas “degeneradas” derivadas das anteriores. São elas: “o principado, [que] facilmente se torna tirânico, o optimate [que] com facilidade se torna governo de poucos; o popular [que] sem dificuldade se torna licencioso.” [5]   
            O que pretendo extrair disso é que Maquiavel percebe uma circularidade entre essas formas de governo. Para ele, a degeneração do principado em tirania conduz a cidade a derrubar o tirano e instituir o optimate (ou governo dos melhores), com a corrupção dessa forma em um governo de poucos o povo finda por instituir o governo popular, quando este finalmente se torna licencioso, novamente emerge um príncipe e o ciclo se reinicia.
            Maquiavel entende que essa política circular conduz a cidade à desgraça. “Quase nenhuma república pode ter tanta vida que consiga passar muitas fezes por tais mudanças e continuar em pé.” [6] Nesse sentido, o pensador renascentista defende uma forma mista capaz de contemplar a virtude e combater os vícios dessas três formas aristotélicas.
            Trata-se de um modelo de instituição que seja capaz de gerir as distensões imanentes ao corpo político, que não busque extirpar os interesses divergentes, mas sim que seja capaz de usar dessa aparente belicosidade civil para erguer a grandeza da república. Não se trata de por fim aos confrontos, mas de conduzi-los de modo a nunca permitir que se tornem um flagelo para a cidade inteira.
            É nesse sentido que Maquiavel em seus Discursos não condena, mas louva os tumultos da república romana. Não se trata de aplaudir os tumultos como um fim em si. O que Maquiavel observa é como Roma foi capaz de, a partir dessas distensões entre a plebe e o senado, construir uma república com instituições fortes o bastante para conduzi-la a grandeza que conquistou. Foi então a virtu romana em lidar com seus conflitos que ergueram os alicerces de sua grandiosidade.
            Nicolau Maquiavel entende que “em toda república há dois humores diferentes, o do povo e dos grandes.” [7] Fato é que, o filósofo renascentista entende também que “todas as leis que se fazem em favor da liberdade nascem da desunião” [8] desses humores. Nesse sentido, me parece que a liberdade dos cidadãos em Maquiavel não emana da paz de uma forma “pura” de governo, mas sim da gestão da guerra contínua dos interesses divergentes.
            Qualquer das formas ditas “puras” finda por tentar se impor. A forma mista que Roma construiu era capaz de contemplar em si todos esses humores, seja no senado (os grandes), seja com a presença do tribuno da plebe (o povo).
            Também não é sem razão que Maquiavel acredita competir ao povo a guarda da liberdade, e não aos “grandes”. É o desejo de não ser dominado que fundamenta a maior confiança no povo. A plebe romana não teria condições de usurpar a posse da liberdade para ocupar a posição de dominação. Nesse sentido, a liberdade se encontraria assegurada, vez que sua tutela compete àqueles cujo desejo maior é a ausência da dominação.       
            Essa solução oferecida por Maquiavel consiste então “em organizar as leis relativas à constituição de modo a produzir uma relação de equilíbrio tenso entre essas forças sociais opostas.” [9] O que é preciso, entretanto ter claro é que esse equilíbrio tenso diz respeito preponderantemente a uma liberdade interna na cidade, ou seja, à liberdade dos integrantes do corpo político, dos cidadãos. Não devemos confundir isso com a liberdade externa, ou liberdade do corpo político, da cidade.
            A partir dessa forma mista de governo Romana, louvada por Maquiavel, vemos que a liberdade dos cidadãos se constitui fundamentalmente enquanto obediência a lei. É “a lei que torna os homens bons” [10]. É o domínio da lei que garante a liberdade interna dos cidadãos.
            Dessa maneira, compete às instituições se aprimorarem na gestão dos conflitos para tirar deles a boa lei, a lei da liberdade. Nesse sentido, Maquiavel chega a defender a necessidade, por exemplo, da possibilidade de acusações públicas para que se mantenha a ordem da república[11]. Trata-se de um meio de gerir conflitos. As acusações permitem tanto intimidar aqueles que poderiam atentar contra a cidade, como assegura que a ira pública seja canalizada de forma segura, sem que o crime de um possa representar a ruína da república.
            Veja que a preocupação de Maquiavel não é necessariamente com a justiça das decisões nos tribunais de acusação pública. Sua preocupação é com a manutenção da ordem.

“Se um cidadão é punido ordinariamente, ainda que de modo injusto, segue-se pouca ou nenhuma desordem na república; pois a execução não é feita com forças privadas e forças estrangeiras, que são as que arruínam a vida livre, mas sim com forças e ordens públicas, dentro de seus próprios termos, não se ultrapassando o limite além do qual se arruína a república.” [12]                                                                                                                                               
           
            O caso das acusações é assim um bom exemplo trazido por Maquiavel de como gerir os conflitos no interior da república, de modo a assegurar meios seguros, institucionais, onde é possível liberar as paixões, a lascívia, sem colocar em risco a república.
            A liberdade pode então ser vista, primeiro como uma liberdade externa, uma liberdade do corpo político que consiste fundamentalmente em não dependência, em autogoverno. Além disso, é preciso também observar em Maquiavel a liberdade interna, a liberdade dos cidadãos, que é construída a partir da obediência à lei, mas requer um aparato institucional capaz de contemplar a tensão permanente entre os grupos. Essa liberdade dos cidadãos é então construída a partir da luta perpétua contra a tirania que ao mesmo tempo tenciona e mantém a ordem.  


Ivan de Sampaio 
   


[1] MAQUIAVEL, N. Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio. Editora Martins Fontes. São Paulo/SP. 2007.  
[2] Ibidem. P. 09
[3] SKINNER, Quentin. Maquiavel. Editora Brasiliense. São Paulo/SP. 1988. P. 84. 
[4] Ibidem.
[5] MAQUIAVEL, N. Op. Cit. P.14.
[6]  Ibidem. P. 17. 
[7] Ibidem. P. 22. 
[8] Ibidem.
[9] SKINNER, Quentin. Op. Cit. P. 103.
[10] MAQUIAVEL, N. Op. Cit. P.20.
[11] Cf. Ibidem. P. 33/36.  
[12] MAQUIAVEL, N. Op. Cit. P. 34.

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