quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Texto de Apresentação da Monografia de Conclusão de Curso


Texto de apresentação da monografia de conclusão de curso
Proferido na banca do prêmio de “menção honrosa em monografia jurídica” 
no dia 08 de dezembro de 2011.

Título do trabalho:
Banca:

Introdução

            Nesse trabalho busquei, de certa forma, sistematizar algumas imagens sobre o Estado e os fundamentos do direito positivo que construí ao longo do curso de graduação em direito. Penso então nesse trabalho como o retratar de um percurso, não um caminho como os caminhos na floresta de Heidegger, mas um percurso como o percorrido por Joseph K. nos intrincados corredores do tribunal. No início, parece apenas um caminhar em ambiente claustrofóbico onde se retira das luzes da lei a própria escuridão das vielas da burocracia. Mas, o que foi possível perceber, e espero ser capaz de mostrar aqui, é que todo esse imponente edifício jurídico nada mais é do que o biombo que oculta os pudores do poder.                
            Dito de forma bem geral, o que busquei fazer foi traçar duas linhas críticas relativamente àquilo que a filosofia política intitula de “teoria da soberania” ou “teoria jurídica da soberania”.

Capítulo I: Teoria da Soberania

            No primeiro capítulo de desenvolvimento, fiz uma breve síntese dos contornos gerais da idéia de soberania. Não vou aqui resumir todo esse capítulo, mas, para essa exposição acho que nos basta destacar que parti do pensamento de Maquiavel, onde julgo que encontramos a primeira formulação mais completa da soberania, e, em seguida, abordei algumas idéias pontuais de três contratualistas (T. Hobbes, J. Locke e J-J. Rousseau).
            O que busquei mostrar com o estudo desses filósofos chamados contratualistas, é que a preocupação central em todos eles é a mesma. Na modernidade, parece que o grande problema filosófico-político passa a ser a questão da legitimidade do poder soberano. Do mesmo modo, o direito parece ser construído também no âmago dessa problemática. A teoria da soberania e o direito que nela se fundamenta são então, preponderantemente, formulados em torno do problema moderno da legitimidade do poder.

Capítulo II: O Ordenamento Jurídico Simbólico

            Dediquei o segundo capítulo de desenvolvimento do trabalho ao estudo da legislação e da constitucionalização simbólicas. A pretensão foi apontar o significado de uma norma jurídica ineficaz do ponto de vista normativo no interior do sistema jurídico.
            Iniciei por um estudo da legislação simbólica. De forma bastante sintética poderíamos defini-la como sendo aquela que carece de efeitos normativos e cuja referencia textual é normativo-jurídica, mas serve antes para finalidades políticas.  Esse efeito simbólico é sempre manifesto no âmbito do predomínio. Toda lei produz efeitos no âmbito do simbólico, a particularidade aqui é que esses efeitos simbólicos tendem a supressão da eficácia normativa da legislação.        
            Após a propositura e análise de uma tipologia para as normas simbólicas conforme o pensamento de Marcelo Neves foi possível destacar a preservação da ordem como a marca predominante do efeito simbólico positivo das normas.
            Mencionarei brevemente apenas um desses tipos de legislação simbólica que explorei e que julgo o mais importante para o presente trabalho, refiro-me a legislação álibi.
            A legislação álibi seria aquela que teria como função dar uma resposta a algum anseio imediato da população. O objetivo aqui é descarregar a pressão política da população e expor o Estado como sensível a suas demandas. Vejam que, pouco importa se a lei tem ou não condições de efetivamente suprir as demandas que a motivou. Em verdade, trata-se mesmo de dar uma aparência de solução ao problema e com isso, inclusive impedir o caminho para qualquer outra medida que poderia ser efetiva.
            Um exemplo que podemos mencionar no caso da nossa legislação pode ser a lei de crimes hediondos (lei 8.072/90). Essa lei foi aprovada pelo congresso nacional em resposta da escalada da criminalidade carioca, poucos anos depois, em 1994, essa mesma lei foi ainda emendada pela primeira lei proveniente da iniciativa popular na história do Brasil. O motivo dessa emenda foi o assassinato a filha da atriz global Glória Perez.
            Agora, o interessante dessa lei de crimes hediondos é que ela versa preponderantemente sobre regimes de cumprimento de penas, ou seja, ela não tipificou novas condutas como crime, nem disciplinou meios mais eficientes de apuração de delitos. Veja que essa legislação não tinha a menor capacidade para combater a criminalidade, ela apenas agravou a penalidade de condutas que já eram crimes. Tanto o foi que a promulgação da lei em 1990 e de sua emenda em 1994 não tiveram qualquer impacto nas estatísticas de cometimento dos crimes. A edição da lei era, em verdade, mera resposta legislativa para reavivar a confiança popular na atuação estatal.
            No fundo a legislação álibi serve então de “meio de exposição simbólica das instituições” [1]. O Estado vem se mostrar como ente seguro e digno de confiança. A questão é que essa medida “não apenas deixa os problemas sem solução, mas além disso obstrui o caminho para que sejam resolvidos.”[2]        

a marca [da legislação simbólica] parece ser sempre uma busca por manutenção, por estabilidade, por perenidade. Nesse sentido, me parece que o grande efeito simbólico manifesto é a conservação de uma determinada ordem.” (P. 40/41)  

            Depois de feita essa análise inicial dos efeitos simbólicos da legislação, passei ao exame do simbólico no atinente ao núcleo do sistema jurídico, a Constituição.
            A partir do estabelecimento da Constituição como doadora de sentido e validade para todo o direito positivo, foi possível observar os efeitos simbólicos manifestos no topo da pirâmide da hierarquia das normas. Nesse sentido, percebeu-se que a carência de normatividade no núcleo do sistema jurídico aponta para a falência do próprio direito positivo enquanto instrumento normativo.
            Ao perceber a Constituição enquanto símbolo, podemos apontar para a falência das regras próprias que supostamente conduzem o exercício da soberania. Quando a Constituição parece não se concretizar no mundo fenomênico, denota-se que esse texto não tem a capacidade de regrar efetivamente as ações do Estado.     
            No âmbito dos efeitos positivos da Constituição enquanto símbolo, salientei que a positivação do direito parece funcionar mais para evitar a concretização do conteúdo de seus textos do que para garantir sua efetiva aplicação. Trata-se de uma função álibi do próprio processo de positivação e do direito positivo como um todo.  Da constitucionalização simbólica

“não decorre nenhuma modificação real no processo de poder. No mínimo, há um adiamento retórico da realização do modelo constitucional para um futuro remoto, como se esta fosse possível sem transformações radicais nas relações de poder e na estrutura social”.
             
            Como conclusão desse capítulo, mencionei a percepção de um Estado não jurídico, cujas práticas não se orientam pelos ditames constitucionais ou legais. A ordem jurídica parece funcionar mais como mera mantenedora do Estado e de sua própria reprodução enquanto ordem discursiva ao invés de agir como limite ou como meio de conduzir as ações estatais.

Capítulo III: Por uma anti-teoria do Estado

            No terceiro e último capítulo de desenvolvimento do trabalho, o esforço teórico se construiu em torno de uma questão: se o direito positivo não regra a sociedade conforme seus ditames e atua preponderantemente enquanto preservação de uma ordem, o que afinal regra a sociedade e que ordem é essa que parece operar fora do âmbito do discurso jurídico da soberania?          
            Primeiramente, me afastei de uma análise ontológica do poder. O objetivo da análise nesse capítulo foi observar o poder não como uma substancia ou enquanto um ontos. Dessa maneira, o poder não pode ser possuído nem colocado em um local, classe ou ente. Não há aqueles que detêm o poder e aqueles que não detêm. O poder se exerce, não possui uma natureza, mas é antes um conjunto de mecanismos que opera que se manifesta no bojo das relações sociais. Nesse sentido, o que se busquei fazer nesse capítulo foi tratar da genealogia dessas relações de poder, partindo de suas manifestações mais capilares até as organizações mais gerais das estratégias de poder.
            Em seguida, por meio também das análises de M. Foucault em seu curso ministrado no Collège de France em 1976 (Em Defesa da Sociedade), inverti a análise contratualista sobre a formação do Estado. Foucault busca fugir da formulação de Clausewitz e, ao invés de tratar a guerra como a política praticada por outras vias, afirma antes que “a política é a guerra continuada por outros meios”. 
            Por meio dos discursos analisados por Foucault sobre essa forma de ver a política, foi possível destacar duas críticas à teoria da soberania. Primeiro, os teóricos contratualistas, em especial T. Hobbes, não são teóricos da guerra. Esses filósofos além de descreverem uma guerra que não vai além do plano da representação são antes idealizadores da paz. O pacto hobbesiano coloca fim a guerra, institui a paz. Em segundo lugar, quando se afirma que a soberania coloca termo a guerra, o grande efeito dessa afirmação é antes esconder em baixo dos tecidos alvos da paz a vermelhidão da guerra.    

“A lei não nasce da natureza, junto das fontes freqüentadas pelos primeiros pastores; a lei nasce das batalhas reais, das vitórias, dos massacres, das conquistas que têm sua data e seus heróis de horror; a lei nasce das cidades incendiadas, das terras devastadas; ela nasce com os famosos inocentes que agonizam no dia que está amanhecendo.” [3]                

             A questão é que isso não significa que o nascimento do Estado tenha representado o armistício das forças em confronto. “A lei não é pacificação, pois, sob a lei, a guerra continua a fazer estragos no interior de todos os mecanismos de poder, mesmo os mais regulares.” [4] 
              
“O que propomos aqui é justamente perceber que por baixo das cedas alvas da ordem, o caos permanece, a lama permanece, o enfrentamento permanece, a guerra permanece.” (P. 67)  

            No fundo, esses discursos que afirma a instituição da paz, apenas colocam a guerra em outros termos de forma a garantir que determinados grupos que haviam conquistado uma “vitória” circunstancial possam, por meio da instituição de uma ordem, não mais colocar seus privilégios em jogo nas disputas de poder. Trata-se de regrar a guerra em benefício de determinados interesses, de colocá-la em termos que beneficiam um dos lados do conflito. 
            Depois dessa análise, busquei reconstruir as formulações foucaultinas a respeito da idéia de governo. Foram deixadas um pouco de lado as relações de dominação e debrucei-me com mais atenção no poder que conduz.
            Uma vez que o discurso da soberania, pelas análises de Foucault, se mostrara mero meio para ocultar a guerra perpétua da sociedade; os estudos da genealogia do governo emergem justamente para apontar como, dentro das relações belicosas de poder, é possível que exista um poder que conduz os corpos e que pode gerir as populações.
            Desse ponto, o que quero destacar é que podemos depreender dois modelos daquilo que Foucault chama de normalização. A normalização disciplinar e a normalização da segurança ou do biopoder. A normalização disciplinar ou “normação” trata de partir de um padrão de normalidade prévio e buscar moldar os corpos a essa norma. Ela busca desenvolver métodos de classificação, de vigilância e de adestramento. Opera enquanto uma tecnologia de poder que produz comportamentos muito mais do que reprime. Por fim ela permite que se estabeleça uma divisão entre os aptos e não aptos, entre os normais e os anormais. O esforço na disciplina será então de “normação” de transformar tudo (as pessoas, os gestos, os atos, os pensamentos) segundo seu padrão de normalidade. De forma geral, vemos essa forma de normalização nos âmbitos intra institucionais (presídios, escolas, hospitais, etc.).
            Já a normalização no âmbito da segurança não estabelece previamente esse padrão de normalidade. Aqui primeiro se apreende a curva normal de fenômenos sobre os quais se pretende intervir. Qual é a taxa média de contaminação da população por determinada doença? Quantos crimes são cometidos em média por ano nessa cidade?  etc. A partir daqui é que se pode buscar minorar os fenômenos negativos e majorar os positivos. Essa normalização então investe, atua sobre índices de normalidade. Já não se trata de uma divisão entre normal e anormal, mas sim de estabelecer parâmetros de tolerabilidade, de “desejabilidade” dos fenômenos. Podemos chamar essa forma de intervenção nos domínios da vida da população de “biopoder”.                                                        
            Pois bem, o que quero destacar de tudo isso é que, me parece que aquilo que entendemos por governo esta mais ligado a essa idéia de disciplina e de biopoder do que aos discursos da soberania jurídica.                           
            Dessa maneira, desenvolvi ainda nesse trabalho, por meio dos estudos dos cursos de Foucault no Collège de France em 1978 (Segurança, Território, População) e 1979 (Nascimento da Biopolítica) uma teoria do governo. Procurei mostrar como as práticas de governo, originárias em grande parte da pastoral cristã no medievo, pouco a pouco se secularizaram e se “entificaram” no Estado.
            A idéia de governo parece surgir, ou ser inspirada no chamado Regimen Animarum (Governo das Almas). Da mesma forma que o clérigo cristão deveria conduzir à salvação das almas, pouco a pouco foi se atribuindo ao soberano o dever de conduzir à salvação dos corpos e da cidade. Ocorre que, a autoridade desse soberano, ou o Regnum, era visto como meio para possibilitar que ele cumprisse essa função. Maquiavel parece inverter e mesmo confundir essa distinção entre o Regimen e o Regnum, entre o governo dos corpos e a autoridade do soberano. O governo em Maquiavel parece ser colocado a serviço da manutenção da autoridade. Já na modernidade o tema do governo é retomado, ele reaparece como se fosse agora função do Estado. Dessa forma, enquanto o Estado gira e torno dos discursos da soberania, o governo pode ser tratado em outros termos. É assim que o governo parece guardar relação muito maior com a lógica da economia política, com a lógica de custo benefício, com as práticas de disciplina e de biopoder do que propriamente com a lógica da legitimidade soberana.
            Veja então que, ao contrário de o Estado produzir um governo, o governo aparece como sendo anterior mesmo ao Estado. De certa forma o que vemos foi um processo em que a práticas de governo parecem ter se “entificado” no Estado, mas de forma a se manter fora da lógica dos discursos da soberania. O que parece ter acontecido foi, como diria Foucault, uma “governamentlização” do Estado.
            Dessa forma, o que pude destacar é que a “normação” disciplinar bem como a normalização do biopoder são as duas formas efetivas de exercício de poder ocultadas pelos discursos jurídicos da teoria da soberania. As práticas efetivas de governo não cabem na dicotomia da lei permitido-proibido. A população parece não poder ser gerida nesses termos. É preciso entender a ordem que opera nos processos de domesticação dos corpos e de gerência dos fenômenos quantificados pela incerteza da probabilidade. Nesse sentido a lógica a que se reporta a essas formas de poder parece ser antes a da economia, a da relação custo benefício e não a da dicotomia legal ilegal.
            É nesse sentido que podemos ver mesmo o cumprimento e o descumprimento das normas legais ou constitucionais. O Estado não faz ou deixa de fazer isso por que é ilegal ou legal. Agora que parece que orienta sim as condutas do Estado são os custos, qual é o custo (custo aqui entendido no sentido largo do termo, curso econômico, político, social, etc...). Qual é o custo do cumprimento da lei, e de seu descumprimento? Essa parece ser mais a pergunta que orienta o exercício do poder do Estado e das práticas de governo. Nesse contexto o simbólico poderia ser visto como meio mesmo de lidar com esses custos políticos em torno do discurso jurídico.                      

Conclusão

            Dessa maneira, a soberania parece funcionar enquanto um discurso tautológico que opera apenas enquanto símbolo que oculta as entranhas do poder.
            É por meio da soberania que a sociedade contemporânea retira da democracia das formalidades do Estado sua servidão às práticas de governo. A soberania usa assim, as luzes da democracia para ofuscar a percepção e ocultar a submissão ao biopoder e à disciplina, para ocultar à lógica econômica da gestão da vida.        
“É preciso falar constantemente da democracia e seus princípios, para que não se torne perceptível que suas formas não dizem respeito à efetividade do poder. É necessário que se afirme, dia após dia, a supremacia da Constituição, para que não se perceba a lógica econômica real da governamentalidade. É imprescindível que a paz seja cotidianamente louvada para que a guerra continue silenciosa. O Estado busca, constantemente, afirmar sua legitimidade, para que o governo permaneça fora desses parâmetros. O direito precisa ser continuamente assegurado, para que nenhum outro discurso de poder possa emergir das profundezas das instituições ou da multiplicidade da população.” (P. 93)   


[1] NEVES, Marcelo. A Constitucionalização Simbólica. São Paulo/SP, Martins Fontes, 2ª edição. 2007. P. 38. 
[2] Ibidem.
[3] FOUCAULT, Michel. Em Defesa da Sociedade: Curso no Collège de France (1975-1976). P.58/59.
[4] Ibidem, P.59.

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