terça-feira, 10 de julho de 2012

A Emergência do Sujeito e a Liberdade: Heidegger e Sartre


Depois de longos meses de abandono retomo os escritos nesse blog. Hoje publico então esse pequeno texto que escrevi ainda no ano passado como parte da avaliação de uma disciplina que cursei na graduação em Filosofia na FFLCH/USP ministrada pelo Professor Dr. Eduardo Brandão. Sem mais, segue o texto.     

A emergência do sujeito e a liberdade:
Heidegger e Sartre

            O marco inicial da modernidade está no pensamento de Descartes. Ao menos é assim que afirma Heidegger. Nessa leitura que o filósofo alemão faz de R. Descartes, o que tem relevante destaque e que caracteriza precisamente o pensamento moderno é a emergência do sujeito. Não um sujeito que simplesmente funda a cisão entre objeto e sujeito, mas um ente que pode pela representação se “assenhorar” do mundo.
            Antes de Descartes é como se o “ente” subjazesse por si mesmo. “Todo ente, na medida em que é um ente, é concebido como sub-iectum.” [1]. Dito de forma mais abrangente, e talvez um tanto hegeliana, antes da metafísica moderna é como se o “ser ai” do mundo não precisasse do homem para existir.
            O que acontece na modernidade é que o homem (o sujeito) passará a ser o destinatário de toda representação. O mundo passará a existir (ou ao menos terá sua existência mediada) pela representação. O homem será assim, ao mesmo tempo, o destinatário e o meio pelo qual a representação é construída, por vezes ele poderá ser mesmo o conteúdo representado. É diante disso que esse homem, esse sujeito precisará, antes de tudo, ser assegurado.
            O cogito cartesiano é visto então por Heidegger como o meio para estabelecer os critérios da verdade, e a verdade mesma passa agora a ser reduzida à certeza. “O ‘novo’ da determinação da essência da verdade consiste no fato de a verdade ser agora certeza.” [2] Mas, é preciso destacar que a leitura que Heidegger faz do cogitare cartesiano é que possibilitará essa ideia de verdade enquanto certeza, e mais do que isso, ao ler o cogitare de Descartes não apenas enquanto pensar, mas enquanto representar, Heidegger pode começar a falar efetivamente em um “assenhoramento” do mundo pelo homem.
            O filósofo alemão nos afirma que “o cogitare é um apresentar para si aquilo que é re-presentável.” [3], mais do que isso, “algo só é apresentado – cogitatum – para o homem, quando é fixado e assegurado para ele como aquilo sobre o que ele pode ser senhor a partir de si” [4]. Mas o que exatamente é assegurado por meio da representação? Podemos perceber no ato de representar uma tentativa de objetivação do mundo pelo homem, por meio da qual esse sujeito se torna senhor do mundo. Mas a questão é que a representação é antes uma forma de o homem se assegurar de si mesmo.
            Para Heidegger, “todo re-presentar humano é um representar-‘se’” [5]. Não se trata aqui de simplesmente colocar o homem enquanto objeto de si. Trata-se sim de perceber que o homem que representa é co-representado para si, sem que se torne propriamente objeto nesse ato. É através dessa leitura que se torna possível ver a sentença de Descartes “cogito é cogito me cogitare” como “a consciência humana é essencialmente consciência de si.”[6]
            È essa consciência de si que tem caráter de certeza necessária e concomitante ao ato de representar para a afirmação de toda verdade na modernidade.
“Pois, na re-presentação humana de um objeto, aquilo ‘em contraposição ao que’ ele é posicionado, a saber, aquele que re-presenta, já está a-presentado por meio desse objeto enquanto um objeto que se encontra contraposto e re-presentado, de modo que o homem pode dizer ‘eu’ por força dessa apresentação para si mesmo como aquele que re-presenta.” [7]                                                          
            Nesse sentido, encontra-se assegurada a representação, bem como o sujeito que representa. É assim que Heidegger pode afirmar que o “eu sou” não é deduzido primeiro do “eu represento”. O que acontece é que o “eu represento” é, “segundo a sua essência, aquilo que já me apresentou o ‘eu sou’.” [8]
            A partir desse “asseguramento”, da certeza do cogito sum, está então determinada a “essência de todo conhecimento e de tudo passível de ser conhecido, isto é a essência da mathesis[9]. A partir disso a natureza, o mundo passa a ser visto como res extensa, como dependente do sujeito, como servo desse sujeito moderno.
            O que ocorre assim na modernidade, é que o homem, enquanto sujeito, se “assenhora” do “ente”, bem como de si mesmo. Subjetivamente, o homem expande sua liberdade, e nesse âmbito não limites para o homem. Heidegger, falando na linguagem de Kant afirma que “a nova liberdade [liberdade moderna] consiste no fato de o homem fornecer a lei a si mesmo, de ele escolher o imperativo e se ligar a ele” [10]. É o “assenhoramento” do mundo pelo homem através da emergência do sujeito moderno que permite essa “abertura para multiplicidade daquilo que no futuro pode ser posicionado pelo próprio homem lucidamente como algo necessário e imperativo.”[11]
            Nesse ponto, acredito ser possível nos voltarmos ao existencialismo de J-P. Sartre e observar como ele constrói, de forma similar a Heidegger, a sua ideia de subjetividade e como isso repercute também em uma concepção similar de liberdade humana. O existencialismo parte então da anterioridade da existência em relação à essência.
   
“há pelo menos um ser no qual a existência precede a essência, um ser que existe antes de poder ser definido por qualquer conceito, e que este ser é o homem ou, como diz Heidegger, a realidade humana” [12].
    
            O ponto de Sartre é que “não há natureza humana, visto que não há Deus para a conceber”[13] previamente. De forma bastante sintética, podemos reconstruir o percurso até essa assertiva do existencialismo sartriano em termos similares a leitura que já fizemos de Heidegger.
            A partir de Descartes Deus vai perdendo lugar na forma de ver o mundo. Quando entramos na modernidade e emerge o cogito cartesiano, a verdade passará a ser assegurada pela representação que o homem faz do mundo e não mais pela revelação divina. O sujeito passará a ser o ponto central da representação. Ao mesmo tempo em que garante a veracidade das representações[14], assegura a si mesmo enquanto aquele que é.
            Assim, é possível afirmar que o existencialismo colocará não só o homem como o ponto central do pensamento, mas como o ponto central de si mesmo. Ao tratar a essência do homem enquanto posterior a sua existência, ao homem passa a ser atribuída a capacidade de formular sua própria essência, sua própria natureza, seu próprio conceito. Dessa maneira, a partir de Sartre, não faz mais sentido tentarmos explicar o homem por sua natureza, pois o que se entende por natureza humana é uma construção do próprio homem. Para Sartre o existencialismo seria o ponto culminante do humanismo, “o homem é não apenas como ele concebe, mas como ele quer que seja, como ele se concebe depois da existência”[15]. A isso Sartre chama subjetividade.
            Sartre nos afirma assim que “o primeiro esforço do existencialismo é o de pôr todo homem no domínio do que ele é e de lhe atribuir a total responsabilidade de sua existência.”[16]  Aqui chegamos a ideia de liberdade do homem. A questão é que, ao conceber a existência como anterior a essência e atribuir à vontade do homem a responsabilidade pelo projeto do seu “vir a ser”, Sartre nada mais está afirmado do que a liberdade desse homem na própria constituição de sua subjetividade, e por extensão na construção do mundo como um todo. Nesse sentido, poderíamos afirmar, que “o único dogma do existencialismo é a afirmação da liberdade do homem” [17].
            Dessa maneira, é preciso ver que há uma aproximação entre a ideia de subjetividade em Sartre e em Heidegger, bem como que em ambos, a emergência do sujeito enquanto senhor do mundo repercute em uma concepção de liberdade do homem. Em Sartre, por sua vez, essa liberdade é assim acompanhada de uma responsabilidade e é diante dessa potência infinita do homem que podemos começar a perceber o peso da responsabilidade que Sartre nos fala. “Sou responsável por mim e por todos, crio uma certa imagem do homem por mim escolhida; escolhendo-me, escolho o homem.”[18]. Nesse contexto o homem é livre e por ser livre se torna também angustia.
            “Tudo passa como se, para todo homem, toda humanidade tivesse os olhos postos no que ele faz e se regulasse pelo que ele faz.” [19] A pergunta que surge é: será que tenho eu o direito de tomar essa decisão sobre mim e sobre o mundo? Essa é a pergunta da angustia, a pergunta que evidencia a tomada de consciência do peso das responsabilidades por sermos livres, por podermos escolher nós mesmos e o mundo. Essa angustia não nos leva ao quietismo, ela não nos impede de agir. Em verdade essa angustia é a condição mesma de nossa ação. Agimos por que somos livres para tal. É a angustia que pode nos apontar o peso da responsabilidade que carregamos, e é essa responsabilidade que nos assegura sermos livres.


[1] HEIDGGER, Martin. Nietzsche (Vol. II). Editora Forense Universitária. São Paulo/SP. 2007. P. 104. 
[2] Ibidem. P. 110.
[3] Ibidem.
[4] Ibidem.
[5] Ibidem. P. 113.
[6] Ibidem. P. 115.
[7]  Ibidem . P. 119.
[8] Ibidem.
[9] Ibidem. P. 122.
[10]  Ibidem . P. 106.
[11] Ibidem.
[12] SARTRE, Jean-Paul. O Existencialismo é um Humanismo in Os Pensadores. Editora Abril Cultural. São Paulo/SP. 1978. P. 06.    
[13] Ibidem.
[14] Em Descartes Deus ainda perece como sendo responsável pela ligação das representações que o homem faz em sua alma e o mundo material. De toda forma, por mais que Descartes ainda se apegue a Deus para explicar a relação corpo/alma, Deus aparece já de forma indireta. A verdade é assegurada pela representação, e Deus assegura que a representação verdadeiramente corresponde a um objeto no mundo.   
[15] SARTRE, Jean-Paul. Op. Cit. P. 06.
[16]   Ibidem .
[17] PERDIGÃO, Paulo.  Existência e Liberdade: uma introdução à filosofia de Sartre. Editora L&PM. Porto Alegre/RS. 1995. P. 22.  
[18] SARTRE, Jean-Paul. Op. Cit. P. 07.
[19] Ibidem. P. 08.

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